sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Primeiro Capítulo

O relógio de pulso já marcava as onze da manhã. A sala de espera que a rodeava era igual a todas as outras em que já tinha estado. A mesa central com o monte de revistas do final do ano passado com reportagens de pessoas famosas que falavam sempre dos mesmos assuntos, a televisão ligada num dos canais generalistas que cada vez mais se tornam enfadonhos, com os mesmos anúncios e as constantes repetições e reposições, o cinzeiro sujo, cheio de beatas de antigas personagens que anteriormente tinham ocupado aquele lugar. Sentada numa cadeira, à cerca de duas horas, Sofia esperava pela sua vez. Na sala encontravam-se cerca de vinte jovens, tão ou mais jovens que ela. O ambiente era lhe demais familiar. Passara por aquele momento mais de dez vezes no último mês.
Já fizera um ano que acabara o curso de jornalismo e sem ser os seis meses de estágio num jornal regional, nunca tinha trabalhado na sua área. A entrevista estava marcada para as nove, mas o mesmo fora dito às outras candidatas. Muitas delas de melhor aparência, mas Sofia sabia que o seu curriculo era melhor do que a maioria. Acabara o curso com média de dezassete valores. O seu trabalho final sobre a escravidão infantil e o seu impacto na comunidade económica tinha maravilhado tanto os seus mentores como os redactores do jornal. Mas no final do estágio nem isso valeu, e a velha desculpa dos cortes de orçamento aplicou-se ao caso dela, deixaram de ser necessários os seus serviços, como eles gostavam de aclamar, dispensando-a. Agora ali, naquela sala de espera, só poderia mesmo esperar.
Apenas passavam dez minutos desde a última vez que olhara para o relógio, quando chamaram pelo seu nome, Sofia Martins. Acompanharam-na até a um pequeno escritório, com o que parecia toneladas de pastas em cima da mesa, um pouco desorganizada, com um computador um pouco antigo, que lhe fazia lembrar os da sua universidade. Num canto armários metálicos fechados a cadeados onde se deveria armazenar a informação mais importante. As paredes estavam repletas de molduras de diplomas e fotografias sérias de pessoas que não pareciam estranhas. Reparou então o quanto escura era aquela sala onde parecia não haver vida. Momentos depois entrou um homem bem parecido, que não deveria ter mais do que quarenta e poucos anos. O cabelo já demonstrava a idade, com pequenas madeixas cinzentas, os olhos eram verdes como as novas folhas da Primavera, e o rosto demonstrava cansaço pelo número de entrevistas que já deveria ter feito. Sentou-se numa cadeira e olhou-a fixamente. Depois falou.
- Vejo que acabou o curso recentemente e com óptimo aproveitamento. Estagiou num pequeno jornal regional, que sinceramente para mim nem se pode ter muito em conta, dado que o trabalho que lá realizava em nada se compara ao realizado aqui. Muito maior e a uma velocidade muito mais vertiginosa. Também digamos que o trabalho jornalistico aqui é muito mais sério, intenso e verdadeiramente importante. Então diga lá o que espera conseguir aqui?
Sofia olhou-o e reflectiu aquelas palavras desde o primeiro momento em que ele abriu a boca. Estava pálida ou pelo menos sentia-se sem pinga de sangue. Nunca tinha encontrado alguém que lhe despreza-se tanto o curriculo e que fosse tão frio e duro. Como fora possível que tenha por meros instantes achado aquele homem atraente. Foi directa.
- O que diz recentemente, ocorreu à cerca de um ano atrás. Acabei a minha lincenciatura em jornalismo na área das ciências políticas com média de dezassete. A minha tese de final de curso foi elogiada por parte dos meus professores... seus colegas. Passei seis meses, sim, num jornal regional que serviu de aprendizagem e no qual esperava ficar mais tempo, mas infelizmente tiveram de cortar no orçamento, e eu, visto ter sido a mais recente aquisição fui dispensada. O que eu espero conseguir aqui? A oportunidade de que quem olhe para o meu curriculo não o ache "fraco". Eu sei que posso ser uma ajuda profissional elevada, porque eu sei que sou boa naquilo que faço.
O homem mirou-a esterrecido, talvez um pouco chocado com a maneira como foi "atacado". Sofia nunca tinha conquistado nada nem ninguém com falinhas mansas. Sempre tivera sido uma rapariga rebelde, e agora uma mulher que nunca guardava nada. O que tinha de ser dito, dizia. Ainda se lembrava da altura em que não estava de acordo com a opinião de um professor e tivera uma acesa discussão durante uma aula inteira. Nunca pensava nas consequências, mas desde aquele dia era como se trabalhasse com ele e não às ordens dele. Ele adorava-a. Professor Eduardo Guimarães. Tinha cinquenta e poucos anos, sentia-o como o pai que nunca teve e sofreu bastante, quando num dia de Novembro soube que tinha sido encontrado morto na cama. Pelo menos morreu rápido e sem dor, pensava. O coração não aguentou.
Olhou-a e falou.
- É nova. Tem o sangue quente. Entraremos em contacto consigo. - Foi curto.
Sofia sabia que não tinha conseguido. Mais uma vez saía dali sem um emprego. Já esperava. O seu lado péssimista dizia-lhe, talvez tivesse culpa, talvez não, mas ela sabia que sim.

O dia estava chuvoso, abriu o chapéu de chuva vermelho e dirigiu-se para o metro. Tinha pela frente um trajecto curto, mas que parecia longo, estava deprimida. Tinha um encontro para o almoço com uma antiga colega e amiga, Clara.
Estava no segundo ano da faculdade, quando a entrar para a sala de aula, tropeçou numa rapariga loura e escanzelada. Nunca tinha reparado nela antes. Sorriu-lhe e ela notou no aparelho metálico que luzia. Sempre foi de ligar a detalhes. Falou-lhe, Clara, era assim que se chamava, vinha do Porto, tinha pedido transferência e estava lá á pouco tempo. Era simpática e queria agradar. A partir daquele momento nunca mais se largaram. Completavam-se. Uma sempre de bem com a vida, a outra sempre ás turras com a vida. Davam-se bem. Não era uma aluna brilhante, mas brilhava. Tinha acabado o curso de jornalismo à dois meses, quando arranjou trabalho numa pequena revista cor-de-rosa. Ela adorava falar da vida dos outros.
Chegou aos cinco para a uma da tarde, a um pequeno restaurante no centro da cidade de Lisboa. Estava atrasada. Clara tinha se sentado numa mesinha escondida. Estava acompanhada. Uma mulher mais velha de cabelos pretos, bem vestida, com ar importante. Sofia estudou-a por instantes. Cumprimentaram-se e sentou-se.
Advogada, Helena Santos Vaz, trinta anos. Clara estava a fazer uma reportagem com ela e já falavam como velhas amigas. "Mulheres Importantes aos 30", assim se chamava o artigo.
Sofia tinha vinte e seis anos e sabia que não seria em apenas quatro que poderia ganhar uma vida nem com dez por cento do glamour daquela mulher. Sentiu-se então uma pessoa velha.
- Olha para ti... estás com uma cara que parece que viu o Diabo! - disse Clara.
Sofia sentia-se como se o próprio Diabo a tivesse castigado.
- Mais uma resposta negativa. Mais um dia perdido. - disse.
- Aqui a Helena é que poderia dar-te uma mãozinha...
Sofia encolheu-se. Clara tinha a mania de sair-se com histórias destas. Era extrovertida demais, pensava ela.
- Claro! É jornalista em que área? Só pensa trabalhar nisso? - disse simpaticamente a advogada.
- Sou formada em Ciências Políticas. Gosto dessa área... muito.
Helena fixou-a e sorriu francamente.
- Sou casada. O meu marido também é advogado e muito sonhador. Quer encontrar o candidato perfeito ás próximas eleições presidênciais. - deu uma gargalhada - O pai dele era senador e pegou-lhe o bichinho da política. Talvez por teimosia, tirou direito, mas adora o mundo das ilusões e das mentiras.
- Talvez por isso foi para advogacia! - afirmou Sofia. Arrependeu-se.
Helena sorriu mais um pouco e continuou. O gelo quebrou-se.
- É verdade. Ele está a formar um grupo de pessoas para uma campanha política. Só ainda não tem o candidato... e você. Que tal falar com ele e ajudá-lo. Talvez precise de alguém que o chame á razão. Eu não consigo esse milagre.
Sofia nunca tinha pensado nisso. Estar por detrás de uma campanha e não a transmiti-la aos leitores. Pensava agora. Ficou com o contacto. Dr. Carlos Santos Vaz. Seria este o seu futuro?
Pareciam agora amigas de longa data. Conversaram durante horas, as três, naquele restaurante alheio a que talvez ali se fala-se sobre o possível futuro do país.

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